Críticas Teatrais

Retrato contemporâneo

Mateus Solano e Miguel Thiré, formam uma dupla potente
ao tratar os temas da atualidade.


O espetáculo “Selfie” chegou a Uberlândia com suas quatro sessões esgotadas. De casa cheia, o Teatro Municipal iniciou suas atividades deste ano recebendo os atores Mateus Solano e Miguel Thiré, com a direção de Marcos Caruso. 

Este trabalho vem se destacando pelas cidades onde realiza temporadas, mesmo que por pouco tempo, como o caso de Uberlândia, porém com um entusiasmo do público que pouco se viu até então na cidade. Alguns podem associá-lo de imediato ao elenco, que são atores de televisão, mas também com uma trajetória de destaque no teatro. Por outro lado, a contemporaneidade do tema proposto foi um dos atrativos para o grande público. 

Ao mesmo tempo, o espetáculo não se restringiu apenas a este hábito dos autorretratos nas redes sociais, apontando também a revolução da internet, o excesso de informações que nos rodeia, a transformação das relações humanas e a partir disso avaliar a nossa convivência nos dias atuais. 

Estas são temáticas bem esmiuçadas pelos atores e direção, o roteiro de Daniela Ocampo é sagaz ao trazer reflexões bem humoradas sobre a sociedade cada vez mais virtualmente conectada, escancarando o comportamento manipulado pelo mercado tecnológico, em constante avanço e que incorpora o tempo todo, novas ferramentas, programas e aplicativos.

A partir do figurino base, macacões azuis de Sol Azulay, os atores são desafiados a utilizar partituras corporais que são bem executadas ao decorrer das cenas, seja na construção dos personagens como também nas transições de cena, prendendo a atenção do espectador, a maior parte da sonoridade é realizada pelos próprios atores, com poucas intervenções em off, o que destaca mais uma vez o refinamento do trabalho atoral.

Interpretado por Mateus Solano, o personagem Cláudio percorre dois extremos, o da privação tecnológica ao auge que é a instalação de um supercomputador no próprio cérebro. Neste caminho, se relaciona com vários personagens de Miguel Thiré, entre eles, a mãe viciada em internet, a namorada impaciente, a apresentadora de talk-show, o idoso que se rendeu à tecnologia, o amigo largadão e outros. Thiré transita com tranquilidade, trazendo a essência de cada tipo, com o humor na dose necessária para cada um deles. 
Miguel Thiré transita com tranquilidade entre os personagens,
atuação aliada à um excelente trabalho corporal.

Em graus variados, mesmo com o exagero que a cena requer em alguns momentos, os arquétipos geram identificação com o público, afinal nos vemos em muitos momentos, ou ainda, lembramos daquela pessoa que publica 30 fotos com a mesma pose e 40 hashtags, que aguarda ansiosamente por curtidas e comentários.

O cenário é minimalista e discreto, torna-se altamente funcional com a iluminação de Felipe Lourenço, que atende com excelência às solicitações de novos ambientes conforme as cenas são alternadas. A direção de Marcos Caruso atingiu uma integração cênica consistente entre atores, cenário e iluminação.

A encenação acerta por não propor respostas às questões levantadas, é delicada ao trazer a pipa como um elemento de simplicidade, que propõe interação humana, remete à infância e não depende da última tecnologia para ser utilizada. Estar conectado o tempo todo é quase uma exigência, mas temos que ter a perspicácia de deixá-la de lado por alguns momentos e ir soltar a nossa pipa. Nem um nem outro o tempo todo, mas equilibrá-los para que possamos usufruir de seus verdadeiros benefícios.

Eduardo Humberto Ferreira
Ator, bacharel em Teatro.

_________________________________________________________________________________

Azul-Poesia

Eva Wilma como Blanca Estela Ramirez, em Azul Resplendor.
Foto: João Caldas
Uberlândia vive um novo e interessante capítulo de sua história cultural. Não que todas as dificuldades históricas de se fazer cultura tenham desaparecido de uma hora para outra, definitivamente não. Entretanto, o pleno funcionamento do Teatro Municipal nos mostra que um capítulo iluminado está sendo escrito a todo vapor e sua ambição maior é deixar marcado de uma vez por todas, o nome de nossa cidade no circuito nacional das artes cênicas.

A última emoção deste capítulo ainda em construção refere-se ao espetáculo “Azul Resplendor”, texto do dramaturgo peruano Eduardo Adrianzén, direção de Renato Borghi, grande nome do teatro brasileiro, e Elcio Nogueira Seixas. O palco do Teatro Municipal recebeu Eva Wilma, Pedro Paulo Rangel, Dalton Vigh, Luciana Borghi, Luciana Brites e Felipe Guerra para uma noite de homenagem aos oitenta anos de vida e sessenta de carreira de Eva Wilma.

A escolha do texto partiu da pesquisa sobre o teatro latino-americano realizada pelos diretores, que visitaram nossos vizinhos e colheram um riquíssimo material sobre a dramaturgia dos países e suas peculiaridades, o que vem se desdobrando em projetos, como a montagem de “Azul Resplendor”, e outros que ainda serão lançados.

Homenagear Eva Wilma e sua carreira brilhante é acima de tudo também reverenciar o teatro, essa proposta norteia toda a encenação, se desenvolve como uma metalinguagem sofisticada, pois encontra nos atores principalmente nos mais experientes, a sustentação necessária para a verossimilhança dos acontecimentos que envolvem os personagens e a realidade nua e crua dos profissionais de teatro, e da cultura em geral.

A metalinguagem é ainda mais poderosa quando se torna uma metáfora da vida em si, a chama de um fósforo que começa com a mágica da luz, avança para o fogo intenso, potente, até que, aos poucos, o calor se desvanece, e quando menos se espera, surge um azul semelhante ao usado para anoitecer os palcos, para assim chegar ao fim inevitável, seja do espetáculo, ou de uma existência. Esta imagem poética é impactante pela simplicidade, está colocada no início e no fim do espetáculo. O ofício do teatro é a própria metalinguagem da vida, isto porque, fazer teatro, estudar teatro, ver teatro nos liga diretamente com a efemeridade da vida e somos convidados a buscar em nós a melhor maneira de lidarmos com isso.

O conflito de gerações entre os personagens Blanca Estela Ramirez (Eva Wilma), Tito Tápia (Pedro Paulo Rangel) e os demais jovens atores, também é um tema bem exposto pela encenação, nos faz refletir como esse embate acontece no dia a dia em todos os setores da vida humana. O velho que é facilmente descartado para dar lugar ao novo, ao dito revolucionário, e muitas vezes sem nenhum embasamento que o qualifique, apenas a falsa pretensão da jovialidade de tudo querer modificar sem a sábia visão do amanhã.

Acredito ser importante deixar registrado momentos como este vividos por todos que estiveram presentes nas apresentações de “Azul Resplendor”, pois vai além de apenas ter a oportunidade de conhecer pessoalmente o trabalho de atores consagrados e que costumamos ver pela televisão. É uma experiência mais profunda quando temos a real noção de que aquele momento da encenação não volta, mas suscitou em nós espectadores, questionamentos, dúvidas, lembranças, vitórias, fracassos e como o tempo vai nos auxiliando em colocar tudo em seu devido lugar.

Eduardo Humberto Ferreira
Ator, graduado em Teatro (UFU)

FONTE:
http://www.correiodeuberlandia.com.br/pontodevista/2013/12/02/azul-poesia/

______________________________________________________________________________________________________

Beth e Clarice: Simplesmente


Uberlândia teve o privilégio de receber nos palcos do Teatro Municipal um dos espetáculos mais aplaudidos e premiados dos últimos anos, seja pela crítica especializada (teatral e literária) e também pelo público em geral. Em dezembro de 2013, o Circuito Grande Otelo finalizou sua temporada na cidade com teatro de altíssima qualidade e com um público ávido por novas experiências artísticas.

A atriz Beth Goulart encantou de maneira muito delicada e ao mesmo tempo profunda, com o seu monólogo “Simplesmente Eu, Clarice Lispector”. No qual também é responsável pela seleção dos textos, sua transposição à cena e pela própria direção. A soma das funções engrandeceu a encenação, de modo a deixar marcadas as personalidades tanto de Clarice quanto de Beth, na medida em que as duas se misturavam na coragem e no profissionalismo da atriz e na personalidade forte e qualidade dos textos da escritora. A impecável atuação de Beth Goulart propiciou ao público a oportunidade de se conhecer a escritora além do mito.       Clarice sempre foi alvo de especulações e suas obras elevadas a um patamar merecido, porém, que parece fugir do nosso alcance, quando deveria ser o contrário. O teatro mesmo sendo um fenômeno efêmero, encontrou neste projeto condições favoráveis de vislumbrar a vida e obra de uma escritora que sempre se questionou, analisou e buscou vida no ato de escrever. Clarice mesmo dizia: “A palavra é meu domínio sobre o mundo”, esta inquietação que ela sempre expressou em vida é delineada de forma cuidadosa e muito poética, o que resultou na coerência da escolha dos fragmentos de textos, entrevistas e personagens da escritora.

O cenário de Ronald Teixeira e Leobruno Gama sugere a sutileza do necessário e funcional, o branco predominante nas paredes que parecem abraçar o palco, é também uma tela pronta para as pinceladas de Beth e Clarice, tão bem pontuadas com a iluminação de Maneco Quinderé. Esta metáfora fez com que o processo criativo artístico e literário pulsasse em todas as ações que foram se sucedendo ao longo do espetáculo.

Um quesito da encenação que chama bastante a atenção é a gestualidade. Sob a direção de movimento de Márcia Rubin, Beth Goulart é precisa: a emoção pontua os gestos com tons harmoniosos, as transições entre a escritora e seus personagens são desenhadas com movimentos limpos e cabíveis, o que demonstra um estado de presença muito forte da atriz e como todo o conjunto de linguagem corporal ganha sentido com a sua intenção e tranquilidade na execução.

Com todos os atributos, méritos e conquistas já mencionados, este espetáculo vai além de ser uma reverência a uma das maiores escritoras do século 20. “Simplesmente Eu, Clarice Lispector, é acima de tudo, uma homenagem à língua portuguesa, idioma que ela mesma tinha tanta sintonia e veneração quando dizia: “Eu amo a língua portuguesa, ela é um verdadeiro desafio para quem escreve.Eu queria que ela chegasse ao máximo em minhas mãos”.


Por essas palavras, nota-se a importância da contribuição que Clarice deixou e o porquê seu nome será sempre lembrado quando o assunto for literatura brasileira e devoção ao ato de escrever. Beth Goulart, por sua vez, merecidamente deixa sua marca na história do teatro brasileiro por um trabalho onde o requinte foi amparado pela simplicidade em constante aprimoramento.

Eduardo Humberto Ferreira
Ator, graduado em Teatro (UFU)

FONTE: 
http://www.correiodeuberlandia.com.br/pontodevista/2014/01/27/beth-e-clarice-simplesmente/

______________________________________________________________________________________________________

INVEJA DOS ANJOS: O equilíbrio da concepção


O nome nos faz viajar no que poderia ser a temática do espetáculo, mas nenhum devaneio poderia adiantar o que o Armazém Cia. de Teatro do Rio de Janeiro traria à cena com ‘Inveja dos Anjos’, na direção de Paulo de Moraes.

A escolha do título da obra é um dos acertos na concepção do espetáculo como um todo, além de profundo, é bastante significativo dentro do contexto da ação dramática desenvolvida. A dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes é consistente e bem elaborada tornando-se uma ligação instantânea com o público, este que embarca em uma viagem introspectiva dos seus sentimentos mais pessoais e que a todo o momento são trazidos à tona, seja em uma palavra ou frase inteira.

O texto seduz, envolve, emociona e revigora, é um ponto de destaque no trabalho, a palavra trazida nos diálogos pulsa além do texto em si. “A memória é uma prisão.” O que uma simples frase como esta pode despertar em um público ávido pela experiência de troca que só o teatro proporciona? É um convite imediato a olhar para si mesmo e identificar passagens, lembranças e pessoas que nossa memória não deixa escapar, é acima de tudo trazer a consciência do que estamos guardando e o porquê disto, consequentemente a reflexão é inevitável. Há também de se considerar o modo como a dramaturgia é encenada, é notável os alicerces sólidos na pesquisa temática e formal da companhia.

A dramaturgia sugere ainda uma identificação imediata com situações vividas pelos personagens,
muito enraizadas nas lembranças que cada um de nós tem e que em algum ponto se entrelaçam e despertam sentimentos submersos. Os atores, formidáveis em seus papéis, contribuíram para que o espetáculo mostrasse um aspecto de alteridade, sendo assim, ver as histórias, os conflitos, as contradições, os desesperos e as epifanias do outro, repercute de uma forma que nos vemos nos personagens e suas trajetórias, e internamente buscamos uma melhor maneira de lidar com isso.

O cenário insere em destaque os trilhos de uma ferrovia que se estende na verticalidade, dando uma maior dimensão ao espaço cênico, a iluminação bem pontuada se harmoniza com as transições do maquinário que entram e saem pelas laterais de forma bem colocada. Isso mostra um grande caráter funcional, onde o que está posto corresponde ao que está sendo encenado.

A sonoplastia vem de encontro ao reforço das lembranças que permeia os personagens, contempla a beleza e harmonia das cenas nos presenteando com emoções fortes. Tudo isso se deve à fluência que existe no grupo já consolidado, que passa pela generosidade em cena, o desejo de somar as potencialidades individuais e o mais importante deixar claro no contexto da cena o quanto aquilo que estão fazendo realmente os tocam, tornando ‘Inveja dos Anjos’ um espetáculo para ser contemplado muitas vezes.

Texto, direção, atuações, cenário, figurino, trilha sonora e iluminação fazem desta montagem do Armazém Cia. de Teatro uma referência no teatro brasileiro dos últimos tempos. A matéria prima do teatro é o ser humano em todas as suas atribuições, isto transposto à cena de maneira poética – como foi ‘Inveja dos Anjos’ - sempre será um convite a apreciar uma obra de arte teatral.

Eduardo Humbertto

FONTE:
HUMBERTTO, Eduardo. Inveja dos Anjos: O equilíbrio da concepção. Jornal Diário de Classe Teatral. Curso de Teatro - UFU. nº1. Junho/2010, pg 06.

Nenhum comentário:

Postar um comentário